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Prefácio
Por quem você venderia a sua alma?
Tal indagação me soaria estranha até há
pouco tempo.
Eu certamente julgaria a resposta óbvia
demais: filhos, amores, pais... uma leva de entes queridos por quem o faríamos
facilmente. Jamais pensei que a escolha pudesse ser feita para salvar a vida de
um inimigo...
Muitos anos se passaram. Estou sentado
na cadeira dura do meu escritório, num luxuoso hotel no centro de Paris, diante
da minha velha máquina de escrever. ‘François Roux – Advogado’ é o dizer
entalhado na antiga placa de madeira, por mim pendurada cuidadosamente diante
da porta da suíte. Ainda sinto orgulho deste nome e deste título, embora há
muito tempo não receba nenhum cliente nem tenha mais energia ou vontade para
atender algum.
Observo as gotas de chuva que escorrem
pela vidraça em minha frente, lentas, juntando-se umas às outras. Penso que as
palavras sairão de minha mente como essas gotas de chuva, com tamanha
profundidade e ao mesmo tempo com uma transparência suficientemente cristalina,
tal que se possa ver através delas.
Aperto os olhos, tentando vencer as
sombras da tempestade que se derrama sobre a cidade. Lá embaixo, um vulto se
move, correndo pela rua alagada em direção ao meu prédio. Levanto-me rápido,
precisamente a tempo de definir a silhueta da mulher sob o guarda-chuva; o
mesmo belo demônio que me enfeitiçou.
Quando retorno ao meu assento, a fim de
concluir a missão de escrever minha história, ela já está tão próxima que posso
ouvir seus passos através da porta fechada da suíte transformada em meu
escritório particular. O toc toc dos saltos pontiagudos sobem impacientes pela
escadaria.
De certa forma, creio que o habitual
não uso do elevador seja uma forma implícita que ela arranjou para me anunciar
sua chegada. Como se eu não a sentisse, como se não fôssemos parte de um mesmo
todo, um único ser dividido em duas partes.
Não quero abrir a porta. Ela me
confunde, rouba-me a inspiração. Tenho de me concentrar nas letras, nas teclas
a minha frente. Não vou levantar-me e deixá-la entrar outra vez em minha casa
para roubar-me as forças e as esperanças, impedir-me de contar a verdade.
Recolho-me em toda a insignificância de
uma criatura que desafia seu criador. Recolho-me em meu silêncio e ignoro os
nós dos seus dedos que batem insistentemente à porta. Percebo, pelo tom das
batidas, que ela está ansiosa. Sua mão está trêmula e insegura.
Talvez a verdade que decidi expor seja
também a verdade dela, não tenho certeza. Seus passos estão se distanciando da
porta, voltando pelas mesmas escadas que a trouxeram para cá, para mim.
Se ela não o quisesse, jamais me permitiria tamanha liberdade. Se não
desejasse ardentemente que sua história fosse contada, apenas me impediria. Ela
sempre consegue fazer de mim o que quer.