No quinto dia da Bienal Online você vai conhecer a Márcia Albuq, que está lançando seu segundo livro hoje aqui na Bienal. Acompanhe pelo facebook todas as atividades do lançamento, e agora leia o primeiro capítulo de "Comprometida", a primeira obra da Márcia.
A novidade está no fim desse post.
“Não
sabia se seria o início ou o meu fim, mas tinha certeza que jamais seria a mesma
depois daquela temporada.”
Chegada
Se luz é um bom sinal,
tenho certeza que chegamos com bons ares ao litoral da Paraíba, uma cidadezinha
de praia no meio do nada, o sol estava literalmente fervendo. No primeiro
instante percebi que se tratava de uma cidade ensolarada, banhada por águas
cristalinas e muito calor. Estamos em pleno verão, muitas pessoas iriam
aproveitar as férias, a praia estará lotada, ideal para uma comunidade de
ciganos nômades que ganha a vida com o comércio. Esse foi meu primeiro
pensamento ao olhar pelas frestas da cortina do carroção.
Despertamos muita
curiosidade e instigamos vários olhares, pois somos no mínimo para quem nos
olha ‘misteriosos’,
e isso faz parte do nosso cotidiano em cada
cidade que nos
instalamos. Costumamos despertar interesse e fazemos uso de todo esse mistério que
nos cerca, seja por nossas danças, por nossos costumes, ou mesmo, por nossa
vida um tanto desregrada para muitas pessoas. Ao passar pela cidade podemos
perceber as conversas e olhares das pessoas curiosas, eufóricas com a nossa
chegada, querendo saber quem somos e o porquê de estarmos ali.
Seguimos caminho por
entre a mata descampada da região para encontrar a propriedade “Estrela Nova”.
Esta propriedade é uma terra cigana, pertencente a um membro do nosso clã que
se estabeleceu na região do sul, mas que a deixou nas mãos do meu avô caso
precisasse assentar naquela região. Apesar de muito grande, em toda a área só
existia uma identificação que era uma placa com o nome da propriedade. Ao
pararmos em frente, pude afastar a cortina do carroção e olhar o horizonte, o
verde da mata se encontrando com uma linhazinha do mar ao longe, era realmente,
a imagem mais linda que tinha visto nos últimos tempos.
O sol brilhava forte,
saímos dos carroções e começamos a assentar, minha família e as várias outras que
compunham nossa comunidade. Não existia portão ou muro que demarcasse a área,
ela era aberta e a imagem daquele lugar era a natureza por toda parte, árvores
com frutas
que eram exibidas de forma atraente e apetitosa, pássaros e ao longe o mar. Em
um espaço formado entre as árvores, os homens do nosso clã tomaram toda a manhã
para retirar o mato e deixar a areia branca e firme, pois precisávamos de um
espaço em que pudéssemos parar os carroções em círculo.
Apesar de vivermos de
forma itinerante, formamos uma comunidade simples e liderada por um
comerciante. Algumas famílias do nosso
clã vêm se fixando e passam a viver de forma sedentária em propriedades, outras
continuam viajando, como é o nosso caso. Nossa comunidade viaja muito e sempre
se instala em lugares diferentes. Passamos pouco tempo em cada lugar, tempo
suficiente para se sustentar, conhecer e guardar a terra. Hoje chegamos cedo,
numa manhã de domingo e nos instalamos nessa propriedade nos arredores da
cidade.
Como sempre, viajava
reclamando, e todas as vezes por essa mudança constante, não queria viver
assim, mudando de lugar a cada três meses, mas nosso clã precisava disso,
seguir e parar para descansar. Não seria nossa meta parar aqui, porém, nesse
descanso, o ‘Conselho de idosos’ liderado por meu avô Cassiano, resolveu que
seria bom para o nosso povo passar um tempo na calmaria antes de mudar para uma
região mais árida num período tão quente como agora.
Nossa família lidera
esse clã há muitos anos, o líder mais antigo e vivo é meu avô Cassiano, hoje líder
do ‘Conselho de anciãos’. Ele quem decidiu que precisávamos
ficar e seu conselho é
respeitado porque é um sábio entre nosso povo. É um homem forte, determinado e
destemido, apesar de ter em torno de setenta anos. Embora tenha tantas marcas
de expressão no rosto envelhecido e várias rugas que tentam cobrir seus olhos,
ele tem um olhar muito carinhoso e conhecedor. Seu cabelo branco e ralo, sobre
os ombros, mantém a mesma beleza, a pele morena e os olhos negros guardam uma
alma amorosa. Os mais velhos do clã dizem que na juventude ele era “um
conquistador”, fazia as mulheres suspirarem. Hoje é um sábio, é quem julga e
orienta os caminhos. Geralmente, tem uma seriedade que assusta, mas esconde um
coração muito grande.
Ao terminar a limpeza
para a retirada do mato, os homens instalaram as carroças de maneira circular
entre uma árvore e outra, nós mulheres abrimos as portas, estendemos cortinas e
embelezamos tudo com flores. Os homens começaram a iluminar o local, pois
rapidamente passou o dia e a noite logo iria chegar. Foram acendendo os
lampiões e colocando suspensos em árvores e nos carroções. Nós mulheres fomos
montando a mesa grande para as refeições, cobrindo com toalhas coloridas e
flores, e para o centro do círculo levamos pedaços de madeira para acender a
fogueira da noite. Cada um dos carroções acomodava famílias, desde os velhos
avós, até os bisnetos, pois somos uma comunidade relativamente grande.
Tínhamos animais e
vivíamos do comércio de joias e artesanato. Além de termos negociantes,
mecânicos e lanterneiros em nosso clã, todos são mercadores ambulantes. Nossa
dança e música também nos rendem algum dinheiro, muito pouco, é bem mais
divertimento que trabalho, como também a leitura das mãos, cartas e feitiços.
Meu pai Ávila, é um homem abastardo e líder do nosso povo, é de uma família
próspera e antiga na liderança do clã. Sempre teve um dom grandioso com os
tratos dos negócios, tinha habilidade com o comércio e facilmente conseguia
convencer os seus clientes, é sábio, calmo, verdadeiro e centralizador, e
apesar de ter apenas quarenta e cinco anos demonstra um olhar muito sofrido e
amargurado que delineia seu rosto sério, apesar do coração gentil. Ele é um
homem cobiçado, alto com pouco mais de 90 kg, olhos azuis e vivos como os da
minha avó Esmeralda. Cabelos compridos, lisos e negros, usa um cavanhaque um
tanto charmoso que combina muito com a sua pele morena. Ele é um verdadeiro
líder, comanda, mas busca ouvir a todos, inclusive meu avô Cassiano, que ao
dizer que tínhamos de ficar foi atentamente obedecido. Meu avô e meu pai são
extremamente conservadores na sua liderança e por isso seguimos quase todas as
antigas tradições.
As comunidades ciganas
geralmente são ágrafas, porém, contrariamos um pouco nossas tradições quando eu
aprendi a ler e a escrever e, com isso, comecei a trabalhar na
educação de todos para
que nossa história se perpetuasse de forma escrita. Até os dias atuais nossos
antepassados asseguraram nossa história de forma
fragmentada por meio da tradição oral. O que se perpetuou sobreviveu pelas
rodas em torno da fogueira, onde os pais contavam para os seus filhos a origem
do nosso povo. De qualquer forma, escrevendo ou não, sempre procuramos
preservar nossa cultura vivendo de acordo com as antigas tradições.
Durante o dia nosso
povo se divide em tarefas, acordamos muito cedo, os homens cuidam dos animais,
do comércio e do artesanato. As mulheres cuidam da comida, da organização da
comunidade e depois se voltam para a confecção do artesanato, principalmente
com pedrarias e lenços. As mulheres também dançam e se preparam para o
casamento.
A dança é uma das
minhas paixões e uma característica forte do nosso povo. Dançamos para nos
divertir, gostamos das batidas da música e da alegria. As mulheres do nosso
povo ao dançar enfeitiçam quem as observa e desperta o desejo de olhar e
entender o porquê dos nossos passos. Nossa dança sempre provoca e rouba olhares
em todos os lugares aonde chegamos, é cheia de ritmos e batidas, misturamos a
alegria da rumba, a sensualidade da salsa, a força do flamenco, a beleza e o
desejo da dança do ventre, e assim, compomos coreografias
para cada dança cigana,
e em cada uma delas escondemos uma infinidade de significados próprio do nosso
povo.
Ao final da tarde
tínhamos terminado de organizar tudo, então começamos a nos preparar para
conhecer a cidade, corri para me produzir porque íamos nos apresentar na praça.
É uma tradição nossa, em toda cidade que chegamos, fazemos uma apresentação de
dança no centro da cidade. É uma maneira de dizer que chegamos. Apaixonei-me
pela dança muito cedo, meu avô fala que sou parecida com minha avó que também
era dançarina, e apesar de não ser cigana de origem seguiu meu avô e aprendeu
muito da nossa cultura.
Por volta de seis horas
da tarde, seguimos caminhando em grupo para a praça da cidade. Estávamos em um
grupo de oito pessoas, composto de homens e mulheres todos vestidos a caráter,
com cores fortes como preto e vermelho destoando no branco. Eu sorria para as
pessoas tal como convite, pois, apesar de ter sido criada para o casamento
prometido, vivia minha juventude com toda intensidade que me era permitida.
Estava de vestido longo, de saia rodada vermelho-sangue que realçava na minha
pele morena e no meu corpo magro delineado por uma cintura fina e um quadril
largo, que segundo Brida, a sacerdotisa, me proporcionaria a chance de ser uma
boa ‘parideira’ e trazer muita alegria à família de meu marido. No meu cabelo
negro e comprido usava uma rosa grande e vermelha que se destacava com o brilho
dos meus fios.
Os olhares da praça começavam
a se direcionar para nós, as pessoas se aproximavam enquanto nos
posicionávamos, e aos
poucos foi se formando aquele círculo de curiosos de todas as idades. Era
noite, lua cheia e inúmeras estrelas no céu. Numa parte vazia da praça
acendemos as tochas e em meio ao fogo, as batidas dos instrumentos e ao som de
música cigana começamos a dançar. Muitos acompanhavam impressionados, talvez
nunca tivessem visto tão de perto um grupo de ciganos, mas misturava-se no
olhar uma sombra de medo e encantamento, um desejo secreto de descobrir nossos
mistérios. Muitos batiam palmas acompanhando as batidas do nosso som e sorriam
alegres junto conosco, mas dentre a esses olhares um em mim permaneceu imóvel,
nos conectamos a cada giro meu, o meu olhar procurava o dele, que nada parecia
ver se não a mim. Seu olhar perturbava-me, via-me mais do que eu permitia. O
que é isso me tomando? Não entendo como pode me olhar assim? Perguntava-me a
todo instante. Parecia que eu dançava para ele. Por um momento, pareceu que não
existia som ou multidão, parecia estar ele e eu.
Sem que esperássemos a
energia acabou e de repente tudo escureceu, as luzes que iluminavam a praça
agora eram apenas da lua, das estrelas e do fogo de nossas tochas. Nossa
apresentação passou a ter mais brilho, o som da nossa música ecoava em toda
praça, agora nada poderia se ver de forma nítida, apenas os vultos de quem nos
olhava de perto. As pessoas em busca de luz se
aproximavam mais, as mulheres sorriam e batiam palma junto com a batida da
música, os homens nos olhavam por inteiro tentando nos
decifrar, e aquele
olhar, aquele olhar permanecia imóvel. Quando a música terminou e começamos
outra dança não mais o encontrei, ele não estava mais, senti que aquele olhar
se perdeu na multidão, durante todo o tempo que continuamos na praça não mais o
encontrei, embora tenha passado o resto da música o procurando. Quem seria ele?
Era a única coisa que ressoava na minha mente, quem era daquele olhar?
Novidade:
Em comemoração ao lançamento do "A mensageira", de Márcia Albuq, seu primeiro livro, "Comprometida", está gratuito no site da Amazon, aqui.
Mas para quem prefere ler impresso, acesse Clube de Autores e adquira um exemplar.
Amei, Priscila! Obrigada!!! bjsssss
ResponderExcluirHistória linda e cheia de mistério, amo! :)
ResponderExcluirBjbj
She
História linda e cheia de mistério, amo! :)
ResponderExcluirBjbj
She